— Conheci Ivete pelo namorado dela na época, Jonga (Cunha, um dos fundadores da Banda Eva). Ele era meu percussionista no início dos anos 90. Jonga me mostrou uma fita na qual Ivete cantava. Achei tudo lindo. Brinco que conheci a voz dela primeiro. Com o tempo, criamos um carinho absurdo uma pela outra e sempre nos falamos. Claro que nossas agendas atrapalham esse contato maior, principalmente, quando Ivete teve Marcelo (filho da cantora, de 5 anos). Mas a música nos une — conta Daniela, aos 50.
Um desses reencontros movidos à música aconteceu durante as gravações do “Globo de ouro — Palco Viva axé”, que estreia nesta segunda-feira, no canal Viva (saiba mais sobre o programa que homenageia os 30 anos aqui). Durante seis dias, dezenas de artistas se revezaram no palco do Teatro Castro Alves, em Salvador, para relembrar sucessos que saíram da Bahia e alcançaram os quatro cantos do país. Um verdadeiro carnaval fora de época... E, de carnaval, Daniela e Ivete conhecem bem.
— Na infância, ouvia Menudo, Gil, Caetano, Bethânia e Gal. Meu pai tocava Nelson Cavaquinho no violão, e minha mãe cantava Maysa. Eu não tinha uma relação com o axé, era apenas foliã. Nos bares onde comecei, cantava samba, bossa nova e alguns rockinhos. Não tinha sonhos, só queria trabalhar. Meu pai havia acabado de morrer, minha mãe passava por uma depressão. Quando surgiu o convite para ser vocalista da Banda Eva, vi que era a chance. Foi a escolha mais acertada da minha vida. Talvez, teria desistido da carreira musical se não tivesse entrado nessa onda — explica Ivete, aos 43 anos, nascida em Juazeiro, no interior do estado.
Criada em Brotas, bairro de classe média de Salvador, Daniela é filha de um ex-mecânico português com uma assistente social de ascendência italiana. Namorava os palcos desde cedo com o balé, arte que aprendeu na infância. Na adolescência, a bailarina se achava inquieta — um de seus apelidos era Furacão —, um contraste com a seriedade dos pais dentro de casa. A energia de sobra só foi canalizada quando descobriu o canto:
— Eu não sabia se queria ser cantora. Acho que segui esse caminho do axé porque queria dançar. E o axé fala de alegria. Uma certa explosão que não tive tanto quando criança. Em casa, eu me sentia um pouco patinho feio, mas sabia que podia ser um cisne. Depois que fui à Europa, entendi melhor meus pais. Fui vendo as tristezas das guerras que seus antepassados sofreram. Digo que os europeus são existencialistas e nós, sambistas. No fim das contas, virei a baiana das baianas, sem berço baiano.
Cantar axé um pouco por acaso não é a única coincidência que une Daniela a Ivete. As duas começaram a se apresentar em bares do boêmio bairro do Rio Vermelho, na capital baiana. Na carreira profissional, outra semelhança: ambas passaram pela Banda Eva, criada nos anos 80. Enquanto Daniela teve uma trajetória mais discreta como backing vocal do bloco, um dos principais do carnaval, entre 1986 e 1989, Ivete ganhou e deu fama nacional ao grupo, vendendo mais de quatro milhões de discos entre 1993 e 1999, quando lançou voo solo. Não sem a ajuda da amiga.
— Daniela me chamou antes de sair da Banda Eva. Ela não fez nenhum juízo de valor do tipo “acho ruim ou acho bom, Ivete”. Lembro que disse: “O meu escritório está aqui, tenho advogados, produtores e tudo o que você quiser para aprender a tomar conta da sua carreira”. Foi parceira — lembra Ivete.
Na época, Daniela já era a Rainha do Axé, apelido mais do que justificado. Seu samba-reggae sacudiu o país, primeiro com “Swing da cor”, em 1991. Um ano depois, parou o trânsito da Avenida Paulista ao levar 20 mil pessoas para o vão central do Museu de Arte de São Paulo (Masp). No dia seguinte, estava nas capas dos jornais: “Uma baiana para São Paulo”.
Ainda em 1992, veio “O canto da cidade”, divisor de águas na carreira da monarca. O álbum vendeu três milhões de cópias no mundo, com disco de ouro na Argentina antes mesmo de ela ter feito um show por lá. Meses depois, a cantora ganhou um especial de fim de ano na Globo, com a participação de Tom Jobim e Caetano Veloso. Foi um pulo para se tornar a artista mais bem paga do país. Era uma baiana invadindo o eixo Rio-São Paulo, abrindo espaço para uma geração de conterrâneos que tomaram rádios e programas de TV com o som da axé music.
— Pouca gente sabe, mas fui de ônibus para São Paulo. Não tinha muita grana, levei minha malinha e decidi ir — conta a Rainha do Axé, que enxerga em “O canto da cidade” um hino libertador e político: — A música surgiu no mesmo ano do processo de impeachment do (presidente) Collor. Era uma forma do país pedir liberdade.
No fim dos anos 90, Ivete assumiu o posto de maior destaque no cenário musical do país, consolidado nos anos 2000. Além de ser a primeira brasileira a gravar um álbum no Madison Square Garden, em Nova York (2010), seu DVD no Maracanã (2008) até hoje é o mais vendido da história da gravadora Universal no mundo: mais de 1 milhão de unidades. Na campanha do pentacampeonato, a música “Festa” virou hino da torcida na Copa do Mundo de 2002. Ao mesmo tempo, a cantora se adaptou a outros palcos. No posto de apresentadora, substituiu Xuxa durante a licença-maternidade da loura e, anos depois, ganhou o comando do programa musical “Estação Globo”, com namoros ainda na dramaturgia, como na pele de Maria Machadão em “Gabriela” (2012).
— Não tenho exaustão, não canso. Tenho essa personalidade para cima, de querer fazer tudo. Não gosto de ficar triste nem choro por sofrimento e, se choro, tem que ter uma testemunha, um colo para apoiar. Acho perda de tempo chorar sozinha — desabafa Ivete, que durante as gravações do “Globo de ouro” não perdeu a piada após precisar retocar a maquiagem para cantar ao lado de Daniela: — Esse menino (maquiador) está dizendo que vai tirar meu brilho na cara. Meu amor, nunca.
Apesar de serem nomes consagrados da axé music, Daniela e Ivete emprestaram suas vozes para outros gêneros com o passar dos anos. Dessa forma, conseguiram se descolar da imagem de cantoras de um ritmo apenas, estratégia ideal para lidar com a crise fonográfica que atingiu a indústria baiana da música. De acordo com um relatório da Crowley Broadcast Analysis do Brasil, que mede a audiência das rádios, o axé não está nem entre as 50 músicas mais executadas no ano passado. Mas, se há uma ausência de novos hits, o número de turistas em Salvador no carnaval ainda mostra a força do gênero. A capital baiana recebeu 700 mil visitantes durante a folia em 2015, cerca de 16% a mais em comparação ao ano anterior.
— Se existe uma crise no axé, os outros gêneros também sofrem, com exceção do sertanejo, que vive seu melhor momento. Precisamos entender que não há uma hegemonia na música. Os gostos se renovam. A vez é do sertanejo, mas não significa que as pessoas não gostem de rock ou axé. Não posso dizer que passo por uma crise. Trabalho muito — explica Ivete, que só decidiu diminuir a agenda de shows (oito em média por mês) após o nascimento de Marcelo, de seu casamento com Daniel Cady, de 30 anos.
Daniela diz que tem dificuldade de pisar no freio. “Não tiro férias há muito tempo”, frisa ela. Mãe de cinco filhos — dois de seu primeiro casamento com Zalther Póvoas, Gabriel, de 29 anos e Giovana, de 28, e três meninas adotadas pela cantora em 2013, Márcia Vanessa, de 17, Ana Alice, de 14, e Ana Isabel, de 5 —, a cantora teve a vida sacudida após divulgar há três anos nas redes sociais seu relacionamento com uma mulher, a jornalista Malu Verçosa. Se os fãs foram pegos de surpresa, Ivete não pode dizer o mesmo.
— Daniela me chamou para cantar no camarote dela e teve um momento em que fomos beber água. Ela disse algo do tipo: “Mulher, estou apaixonada”. E eu perguntei: “Que ótimo, quem é o bofe?”. “Não é bofe não, bicha”, gargalhou ela. Eu fiquei muito feliz. Malu trouxe para Daniela o sentido de aproveitar e saborear mais a vida.
Para os próximos 30 anos de axé, as cantoras tentam prever o futuro:
— Eu estarei toda malhada... Brincadeira, eu me vejo cantando, cantando. Quero continuar sendo feliz — planeja Ivete, que recebe o apoio de Daniela:
— Quem sabe daqui a 30 anos viro uma bailarina mesmo!
Quem sabe, Daniela!
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