A linha mágica da criação do ator nasce e morre nesse “mundo vasto mundo”, ao qual apenas ele tem acesso, revelando prosa e verso de uma essência interiorana. Sassá Mutema — o protagonista de “O Salvador da Pátria”(1989) — talvez seja o exemplo que melhor traduz a raiz de sua arte. Há sete décadas distante do pequeno Desemboque (MG), distrito onde nasceu, Lima recria o boia-fria numa fase ingênua. A maneira com que narra a saga do personagem deixa claro como ele, um homem tão afeito à solidão, encontra doces companhias.
— Sassá tinha uma ideia original linda. Ele não sabia amar, conversar, escrever, ler, mas tinha o dom de manipular as flores e fazê-las vicejar. Durante a novela, aprende mais e mais sobre menos e menos. No fim, quando se torna senador, as flores não vicejam mais — diz o ator, que ficou marcado na trama pelo bordão “ieu?” (versão caipira de “eu?”).
A trama de Lauro César Muniz dava sabor a um contexto efervescente e delicado. Após mais de 30 anos de ditadura militar, o Brasil teria sua primeira eleição direta para presidente. Os planos do autor haviam sido esboçados, e Sassá ocuparia o cargo naquele 12 de agosto, quando o último capítulo fosse exibido. Fora da ficção, Luiz Inácio Lula da Silva e Fernando Collor de Mello polarizavam a disputa na corrida ao Palácio do Planalto. Mas o correr da vida embrulha tudo. O matuto de Lima, um homem do povo, foi associado ao candidato do Partido dos Trabalhadores (PT), o que gerou uma pressão dos dois lados: a esquerda achava o personagem muito manipulável, e a direita via nele uma propaganda para o petista.
— Surgiu um grande impasse: Sassá não poderia ser eleito! Fiquei abalado, chocado — recorda Lauro, que decidiu mudar o rumo da história.
Uma subtrama policial envolvendo narcotráfico ganhou destaque, e o destino do protagonista, embora também encerrado em Brasília, foi alterado. Vinte e seis anos depois, com a barba branca destacada no que antes era o emblemático bigode preto, Lima Duarte acarinha o papel que ajudou a conceber e dimensiona a insatisfação com o desfecho:
— Sassá era maior que Lula. Foi amado e entendido em sua grandeza. Compreenderam aquele chapéu, o jeito de falar. Ele era profundo. Muito mais do que um papel de novela ou um político. Era uma metáfora do Brasil e do que somos.
No camarim, o rosto de Lima ganha um camada de maquiagem para aproximá-lo do boia-fria de décadas atrás. Diante do espelho, encara o reflexo e estranha. Brinca: “Depois de tudo, Sassá vira uma bicha velha” (risos). O personagem estará de volta em poucos (e por poucos) minutos. Instigado a imaginá-lo nos dias atuais, o ator vagueia.
— Ele era muito sensível. Será que termina assim, produto acabado da política, melancólico? Acho que não. Talvez fosse assassinado, após tentar exercer uma liderança — pontua ele, que conclui: — Os papéis vão morrer comigo, mas não fico pensando neles.
Curiosidades
* A história de Sassá é inspirada no caso especial “O crime de Zé Bigorna” (1974), também escrita por Lauro e protagonizado por Lima. “A novela nasceu por sugestão do Daniel Filho. Retomei o caso especial, ampliando a história, criando linhas de intriga e acontecimentos paralelos. Zé Bigorna agora se chamava Sassá Mutema. Nome inventado assim: Sassá, de Salvador e Mutema, corruptela de muita teima”, explica o autor.
* O sucesso do personagem fez com que Lima fosse convidado para ser vice-presidente na chapa de Mário Covas, em 1989. “Disseram: ‘Nosso candidato é o Sassá’”, lembra o ator. Após o convite, Lima foi num jatinho para São Paulo: “Fernando Henrique Cardoso dirigiu o carro em que eu estava para uma reunião”, diz ele, que desistiu da disputa por conselho da família.
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