30 anos de axé, festejados num ‘Globo de ouro’ especial
Daniela
Mercury e Ivete Sangalo juntas nos bastidores no programa “Globo de
ouro — Palco Viva axé”, em Salvador Foto: João Franco / Divulgação
Os
portugueses descobriram o Brasil pela Bahia há mais de 500 anos. Em
1985, o estado foi redescoberto pelos brasileiros. Neste ano, Luiz
Caldas lançava “Fricote”, marco zero da axé music, som que transformou o
carnaval de Salvador, antes sem expressão, num fenômeno de massa. Na
década de 90, o ritmo sacolejante e cheio de malícia ganhou o peso de
duas porta-vozes: Daniela Mercury e Ivete Sangalo.
Donas de uma presença de palco — e de trio elétrico — admirável, as
duas baianas se tornaram ícones de um gênero tão brasileiro quanto o
samba. Amigas de mais de duas décadas, elas comandam a festa.
—
Conheci Ivete pelo namorado dela na época, Jonga (Cunha, um dos
fundadores da Banda Eva). Ele era meu percussionista no início dos anos
90. Jonga me mostrou uma fita na qual Ivete cantava. Achei tudo lindo.
Brinco que conheci a voz dela primeiro. Com o tempo, criamos um carinho
absurdo uma pela outra e sempre nos falamos. Claro que nossas agendas
atrapalham esse contato maior, principalmente, quando Ivete teve Marcelo
(filho da cantora, de 5 anos). Mas a música nos une — conta Daniela,
aos 50.
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Ivete Sangalo e Daniela Mercury fizeram um dueto no programa do canal Viva Foto: João Franco / Divulgação Um
desses reencontros movidos à música aconteceu durante as gravações do
“Globo de ouro — Palco Viva axé”, que estreia nesta segunda-feira, no
canal Viva (saiba mais sobre o programa que homenageia os 30 anos aqui).
Durante seis dias, dezenas de artistas se revezaram no palco do Teatro
Castro Alves, em Salvador, para relembrar sucessos que saíram da Bahia e
alcançaram os quatro cantos do país. Um verdadeiro carnaval fora de
época... E, de carnaval, Daniela e Ivete conhecem bem.
— Na
infância, ouvia Menudo, Gil, Caetano, Bethânia e Gal. Meu pai tocava
Nelson Cavaquinho no violão, e minha mãe cantava Maysa. Eu não tinha uma
relação com o axé, era apenas foliã. Nos bares onde comecei, cantava
samba, bossa nova e alguns rockinhos. Não tinha sonhos, só queria
trabalhar. Meu pai havia acabado de morrer, minha mãe passava por uma
depressão. Quando surgiu o convite para ser vocalista da Banda Eva, vi
que era a chance. Foi a escolha mais acertada da minha vida. Talvez,
teria desistido da carreira musical se não tivesse entrado nessa onda —
explica Ivete, aos 43 anos, nascida em Juazeiro, no interior do estado.
Ivete mostra seu lado musical desde pequena Foto: Reprodução Instagram Criada
em Brotas, bairro de classe média de Salvador, Daniela é filha de um
ex-mecânico português com uma assistente social de ascendência italiana.
Namorava os palcos desde cedo com o balé, arte que aprendeu na
infância. Na adolescência, a bailarina se achava inquieta — um de seus
apelidos era Furacão —, um contraste com a seriedade dos pais dentro de
casa. A energia de sobra só foi canalizada quando descobriu o canto:
—
Eu não sabia se queria ser cantora. Acho que segui esse caminho do axé
porque queria dançar. E o axé fala de alegria. Uma certa explosão que
não tive tanto quando criança. Em casa, eu me sentia um pouco patinho
feio, mas sabia que podia ser um cisne. Depois que fui à Europa, entendi
melhor meus pais. Fui vendo as tristezas das guerras que seus
antepassados sofreram. Digo que os europeus são existencialistas e nós,
sambistas. No fim das contas, virei a baiana das baianas, sem berço
baiano.
Daniela no colo na mãe, com primos, irmãos, tias e o pai Foto: Reprodução Instagram Cantar
axé um pouco por acaso não é a única coincidência que une Daniela a
Ivete. As duas começaram a se apresentar em bares do boêmio bairro do
Rio Vermelho, na capital baiana. Na carreira profissional, outra
semelhança: ambas passaram pela Banda Eva, criada nos anos 80. Enquanto
Daniela teve uma trajetória mais discreta como backing vocal do bloco,
um dos principais do carnaval, entre 1986 e 1989, Ivete ganhou e deu
fama nacional ao grupo, vendendo mais de quatro milhões de discos entre
1993 e 1999, quando lançou voo solo. Não sem a ajuda da amiga.
—
Daniela me chamou antes de sair da Banda Eva. Ela não fez nenhum juízo
de valor do tipo “acho ruim ou acho bom, Ivete”. Lembro que disse: “O
meu escritório está aqui, tenho advogados, produtores e tudo o que você
quiser para aprender a tomar conta da sua carreira”. Foi parceira —
lembra Ivete.
Ivete Sangalo canta no trio elétrico durante o carnaval de 1996 Foto: Divulgação Na
época, Daniela já era a Rainha do Axé, apelido mais do que justificado.
Seu samba-reggae sacudiu o país, primeiro com “Swing da cor”, em 1991.
Um ano depois, parou o trânsito da Avenida Paulista ao levar 20 mil
pessoas para o vão central do Museu de Arte de São Paulo (Masp). No dia
seguinte, estava nas capas dos jornais: “Uma baiana para São Paulo”.
Ainda
em 1992, veio “O canto da cidade”, divisor de águas na carreira da
monarca. O álbum vendeu três milhões de cópias no mundo, com disco de
ouro na Argentina antes mesmo de ela ter feito um show por lá. Meses
depois, a cantora ganhou um especial de fim de ano na Globo, com a
participação de Tom Jobim e Caetano Veloso. Foi um pulo para se tornar a
artista mais bem paga do país. Era uma baiana invadindo o eixo Rio-São
Paulo, abrindo espaço para uma geração de conterrâneos que tomaram
rádios e programas de TV com o som da axé music.
Roberto
Talma, Tom Jobim e Daniela Mercury nos bastidores do especial "O canto
da cidade", em 1992 Foto: Rede Globo / Arquivo / Musical —
Pouca gente sabe, mas fui de ônibus para São Paulo. Não tinha muita
grana, levei minha malinha e decidi ir — conta a Rainha do Axé, que
enxerga em “O canto da cidade” um hino libertador e político: — A música
surgiu no mesmo ano do processo de impeachment do (presidente) Collor.
Era uma forma do país pedir liberdade.
Daniela canta no carnaval de 1993, logo depois da explosão de "O canto da cidade" Foto: Arthur Ikissima No
fim dos anos 90, Ivete assumiu o posto de maior destaque no cenário
musical do país, consolidado nos anos 2000. Além de ser a primeira
brasileira a gravar um álbum no Madison Square Garden, em Nova York
(2010), seu DVD no Maracanã (2008) até hoje é o mais vendido da história
da gravadora Universal no mundo: mais de 1 milhão de unidades. Na
campanha do pentacampeonato, a música “Festa” virou hino da torcida na
Copa do Mundo de 2002. Ao mesmo tempo, a cantora se adaptou a outros
palcos. No posto de apresentadora, substituiu Xuxa durante a
licença-maternidade da loura e, anos depois, ganhou o comando do
programa musical “Estação Globo”, com namoros ainda na dramaturgia, como
na pele de Maria Machadão em “Gabriela” (2012).
Ivete Sangalo se apresenta na gravação do DVD do Maracanã: o mais vendido da história da gravadora Universal Foto: Divulgação —
Não tenho exaustão, não canso. Tenho essa personalidade para cima, de
querer fazer tudo. Não gosto de ficar triste nem choro por sofrimento e,
se choro, tem que ter uma testemunha, um colo para apoiar. Acho perda
de tempo chorar sozinha — desabafa Ivete, que durante as gravações do
“Globo de ouro” não perdeu a piada após precisar retocar a maquiagem
para cantar ao lado de Daniela: — Esse menino (maquiador) está dizendo
que vai tirar meu brilho na cara. Meu amor, nunca.
Ivete substituiu Xuxa durante a licença-maternidade da loura Foto: Michel Filho / 22.07.1998 Apesar
de serem nomes consagrados da axé music, Daniela e Ivete emprestaram
suas vozes para outros gêneros com o passar dos anos. Dessa forma,
conseguiram se descolar da imagem de cantoras de um ritmo apenas,
estratégia ideal para lidar com a crise fonográfica que atingiu a
indústria baiana da música. De acordo com um relatório da Crowley
Broadcast Analysis do Brasil, que mede a audiência das rádios, o axé não
está nem entre as 50 músicas mais executadas no ano passado. Mas, se há
uma ausência de novos hits, o número de turistas em Salvador no
carnaval ainda mostra a força do gênero. A capital baiana recebeu 700
mil visitantes durante a folia em 2015, cerca de 16% a mais em
comparação ao ano anterior.
Ivete com o marido, o nutricionista Daniel Cady Foto: Reproduçao —
Se existe uma crise no axé, os outros gêneros também sofrem, com
exceção do sertanejo, que vive seu melhor momento. Precisamos entender
que não há uma hegemonia na música. Os gostos se renovam. A vez é do
sertanejo, mas não significa que as pessoas não gostem de rock ou axé.
Não posso dizer que passo por uma crise. Trabalho muito — explica Ivete,
que só decidiu diminuir a agenda de shows (oito em média por mês) após o
nascimento de Marcelo, de seu casamento com Daniel Cady, de 30 anos.
Ivete e filho, Marcelo, de 5 anos Foto: Pedro Teixeira / 15.12.2014 Daniela
diz que tem dificuldade de pisar no freio. “Não tiro férias há muito
tempo”, frisa ela. Mãe de cinco filhos — dois de seu primeiro casamento
com Zalther Póvoas, Gabriel, de 29 anos e Giovana, de 28, e três meninas
adotadas pela cantora em 2013, Márcia Vanessa, de 17, Ana Alice, de 14,
e Ana Isabel, de 5 —, a cantora teve a vida sacudida após divulgar há
três anos nas redes sociais seu relacionamento com uma mulher, a
jornalista Malu Verçosa. Se os fãs foram pegos de surpresa, Ivete não
pode dizer o mesmo.
Casamento de Daniela Mercury e Malu Verçosa Foto: Divulgação —
Daniela me chamou para cantar no camarote dela e teve um momento em que
fomos beber água. Ela disse algo do tipo: “Mulher, estou apaixonada”. E
eu perguntei: “Que ótimo, quem é o bofe?”. “Não é bofe não, bicha”,
gargalhou ela. Eu fiquei muito feliz. Malu trouxe para Daniela o sentido
de aproveitar e saborear mais a vida.
Ivete entre Daniela e Malu Verçosa Foto: Reprodução de Instagram Para os próximos 30 anos de axé, as cantoras tentam prever o futuro:
—
Eu estarei toda malhada... Brincadeira, eu me vejo cantando, cantando.
Quero continuar sendo feliz — planeja Ivete, que recebe o apoio de
Daniela:
— Quem sabe daqui a 30 anos viro uma bailarina mesmo!
Quem sabe, Daniela!
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